terça-feira, 24 de janeiro de 2012

NINHO

Ela queria ser livre.
Não ter as asas cortadas e voar pra onde bem entendesse, ir e vir e voltar quando bem quisesse. Fazer planos e segui-los.
Ser livre significava muito, porque era tudo que ela não era faz tempo. Aos 50 anos era dona de casa tinha filhos, noras e netos. Tinha gatos e cachorros. E é claro, um marido.
Ser livre pra ela era não ter nada disso. Era ser só ela.
Mas ser só ela significava solidão.
E essa ela não suportava.
Mas lá nos seus devaneios noturnos, achava que poderia lidar tranquilamente com a solidão. Afinal, o que a solidão poderia importar diante de tantas possibilidades?
Ela não sabia o que era um momento com ela mesma faz tempo. Todos a exigiam muito. Teve uma época que ela gostava um pouco. Sim, ela gostava de ser necessária ao marido, aos filhos, a vizinha, ao gato e as plantas que morreriam se ela não colocasse agua ou adubasse sua terra. Sua vida era molhar e adubar a vida dos que a cercavam.
Até que um dia, não se lembrava da hora, mas estava tentando ler um livro e o barulho do ronco do marido começou a incomodar de forma diferente. Sempre incomodava. Se alguém está roncando do seu lado é porque está dormindo e você estando ao lado também quer dormir, certo? Pois é. Nessas horas ela ouvia música com fones no ouvido. Lia. Fazia palavras cruzadas. E o ronco ao lado incomodava, "pero no mucho"*... Até aquele dia. Naquele dia teve vontade de ter um martelo na mão. Seria tão simples. Só uma marteladinha bem no meio dos dentes. Ou mais simples ainda, ser surda. Desejava ser surda e usar um aparelho de surdez. Era só desliga-lo. Nem teria que explicar ao delegado a pancada na boca do pobre do marido. Mas vejam bem, não se trata de TPM ou coisa parecida. Bem, talvez os queridos hormônios tenham aí uma parcela de culpa em todo esse processo, afinal de contas somos feitas de hormônios. Na falta ou no excesso de algum deles, sai tudo do eixo, não é mesmo?
Pois é, tudo isso pode ter começado lá no seus ovários, mas a questão é que esse pensamento apareceu na sua mente e no seu coração.
Ser livre.
Tinha lido um livro cuja a personagem largava o marido e saia por aí vivendo a sua vida. Parecia tão bom. Parecia tão fácil. Olhar pra dentro de si mesma, sentir suas necessidades. Saber que quer ir a um lugar apenas para perambular pelas ruazinhas e conhecer o rosto das pessoas. Fazer amigos em línguas diferentes.
Mas a personagem em questão não poderia servir de base porque tinha aí uns 25 anos a menos e não tinha filhos. Essa era uma questão pesada. Os filhos.
Os filhos são sua âncora, seu rabo, seu coração e todos os seus órgãos vitais juntos. Você nunca mais se enxerga sem eles. Poxa...você pensou nisso quando estava na cama e sem proteção? Não né...acho que nenhuma pensa realmente. Tem uma fina ideia, mas não sabe até eles estarem no seu útero. Daí sim. É o seu rabo crescendo e te acompanhando até o túmulo.
E aí, como ser livre? Com voar tendo essa ancora que te segura?
Mas ela queria, oras. Pensava nisso. Pensava em não ter marido e nem filhos.
Ser solteira parecia cheirar bem, assim como um assado no forno pra quem está com fome.
Aos 20 anos isso pareceria cheiro do lixão isso sim, ha-ha-ha. Imagine ficar solteira, pra titia, no caritó, na prateleira. Não. Isso não era pra ela não, sempre tão namoradeira e fogosa. Queria ter um marido. Ser de alguém. Dormir e acordar juntos. O bafo era só um detalhe romântico e ela amaria os roncos também.
Casou e foi bem feliz é claro. Não poderia ser diferente. Amava e o amor correspondido faz tudo ser bom. Mas desconfie de tudo que te dizem "é definitivo". O definitivo é o quê exatamente?
Hoje usam muito esse termo: tatuagem é definitiva, a escova do cabelo também e a sua sobrancelha. Você quer viver o resto da vida com o cabelo alisado como se uma vaca o tivesse lambido e aquela sobrancelha riscada na sua cara como um corpo estranho na sua testa. Penso logo naquelas pessoas mais velhas enrugadas e tatuadas. É feio, desculpa aí. O definitivo são os filhos. Isso sim. Eles sim, são pra vida toda. Quer tatua-los na sua pele? Ótimo. Eles ja estão tatuados na sua vida pra sempre mesmo, né.
Ser solteira.
Ser solteira significava ser sozinha. Tem aquele adesivo né: "Solteira sim, sozinha nunca." Facinha na vida, a fila anda, vem que tem. Era o que me parecia. Lógico que ela não queria ser sozinha. Queria ser livre e não freira.
Compromisso. Ela não queria ter compromisso.
Não queria ter obrigações com mais ninguém a não ser ela mesma. Esse negócio de ter que fazer o que não quer fazer agora é muito chato. Como tudo que se faz por obrigação. Ser obrigado a fazer é horrível. No mínimo te dá rugas, vai vendo o quanto é ruim isso. Ah não. As coisas tem de ser feitas com gosto. Mas muito gosto. E era isso que faltava a vida dela. Gosto.
Sua vida estava sem sal. sem açúcar. Insossa.
Solidão. A palavra vinha novamente atazanar sua mente. Não suportava a idéia de solidão. Mas não daquela solidão do sábado a tarde quando o marido saía pra jogar bola e o neto não ficava com ela. Essa solidão era deliciosa. O silencio da casa era confortante. Tomava banho e saia pelada como se fosse criança. Esses eram momentos de solidão.
Mas uma solidão pra sempre, não. Essa era assustadora. E mesmo pensando que não estaria sozinha esse sentimento não a tranquilizava.
Afinal o que ela queria?
Levantou e foi pegar uma caixa de fotografias.
Sua juventude e toda a sua linha do tempo estavam ali e como num filme ela foi revendo as imagens, refazendo os momentos, relembrando os diálogos e fazendo uma linha imaginária de comparação: se viu sentada diante de uma caixa de fotografias de lugares e pessoas com ela mas por mais que ela se esforçasse não lembrava o nome daquelas pessoas sorridentes ao seu lado. Tinha que olhar o verso das fotos para isso. Via os bonitos lugares que estavam registrados nas fotos mas sem pessoas significativas sorrindo neles. Eram só fotos de lugares, como postais.
Foi fazendo essa comparação que ela fez a escolha. Duas mulheres sentadas diante de uma caixa de fotos mas só uma delas tinha um sorriso de verdadeira felicidade ao ver essas fotos. Só uma delas podia deixar a caixa e rever aquelas pessoas retratadas ali. Só uma delas poderia fazer isso.
É. Ela não seria livre para voar como chegou a desejar. Ela tinha um ninho para voltar. E isso era muito bom, afinal das contas.
Ela poderia ser livre, voar e voltar para o seu ninho. E ser feliz assim.



Por Irma Brazil





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